domingo, 22 de agosto de 2010

cultura janeleira

Muito antes da televisão ser a janela por onde se vê o mundo, a janela era a moldura desse novo e despótico regime visual. De olhar e ser olhado. Os que saem são vistos da janela. Mas mesmo os que ficam em casa não passam desapercebidos. (...) A cultura urbana, e, em especial, a carioca, é portanto, “janeleira” (...) Mas mesmo sendo identificada com o feminino e o doméstico, a janela oferece fuga ao lar sem dele precisar sair. É a circulação da rua sem seus perigos. É contato, intercâmbio, economia. “Não saber e ficar e não ver e continuar, é o que se chama esperança”. Princípio de organização social e política, a janela é menos o limite do que o limiar. Marca o ponto em que se tocam o próprio e o alheio, o espaço e o tempo. Verdadeiro quadro genealógico, a janela acena com o firme mas também com o fluido, embaralhando frases e efeitos capazes e conseqüentes com diferenças efêmeras e irrelevantes. Ela assinala a soleira, que impõe uma fronteira, início e fim do doméstico mas ao mesmo tempo, apresenta o limiar infranqueável do ilícito. A tradução simbólica da janela é a crônica, e nesse ponto diríamos que a obra do João do Rio busca, deliberadamente colocar-se à janela, abrir janelas. Elaborar um princípio-esperança, instituindo uma economia generalizada nas trocas simbólicas da modernização incipiente. (...) João do Rio articula a forma estética preferencial, a CRÔNICA, à disponibilidade observadora da sociedade em devir; daí que sua janela se imponha, enquanto linguagem, como sucedâneo da nova gramática da sensibilidade, a do cinema, prefigurando assim as metáforas lancinantes ao gosto dos modernistas, seus primeiros admiradores, na luta por associar arte e vida.

Da Introdução de "A alma encantadora das ruas, de João do Rio", por Raul Antelo

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